2 X 3

É a primeira vez que escrevo num avião. Surpreendentemente, para quem adora escrever e viajar com a mesma intensidade.
Na verdade, o avião ainda nem levantou voo mas não resisti ao ímpeto de agarrar numa caneta e no meu caderno por achar que isto até pode vir a ser interessante.
Viajo só com as minhas duas filhas, de regresso a casa após uns dias mágicos. A mais velha, junto à janela, a mais nova no meio e eu na coxia.
Estão finalmente sossegadas depois de uma certa agitação no aeroporto, fruto da combinação bombástica entre diversão e cansaço pós Disney.
Eis senão quando se instala ao meu lado um pai (em que não pude deixar de reparar porque colocou a bagagem de mão no compartimento acima da minha cabeça e sabemos como são apertados os aviões…) também só com duas filhas, aparentemente das idades das minhas, que não faço ideia de onde vêm mas a excitação persiste porque ainda não se calaram. (Pelo menos parecem divertidas!)
A mais nova já perguntou três ou quatro vezes se já pode ligar o “tablet”, ao que o pai responde as mesmas três ou quatro vezes que ainda não, dado que o avião ainda nem saiu do mesmo sítio.
Estou perdida de riso e com dificuldade em disfarçar. A situação é caricata. Revejo-me no lugar ao lado em versão masculina. E não fosse ele um pouco “engomadinho” demais para o meu estilo, até o consideraria algo jeitoso. Boa pinta, elegante, moreno com um ou outro cabelo branco a espreitar na nuca, barba estilosa de um ou dois dias, camisinha às riscas por dentro de umas calças clássicas azuis escuras a combinar e a cor dos olhos não dá exatamente para verificar ou já muita bandeira irei dar.
Instintivamente, questiono-me: estaremos em iguais circunstâncias? Talvez sim, talvez não mas acaso estivéssemos, fosse eu uma Sandra Bullock e ele um Hugh Grant, isto poderia dar uma daquelas tolas comédias românticas.
Nisto, a mais nova do lado de lá já perguntou mais duas vezes a mesma coisa e o papá (assim o trata ela) começa a não achar piada à repetição e explica-lhe que as pessoas não têm que estar a ouvi-la, completamente alheio, está claro, ao facto de estarem a ser personagens deste meu pequeno filme.
Eis que, já em pleno voo, os aparelhos eletrónicos são finalmente autorizados e um leitor de DVD portátil sossega as crianças vizinhas, fazendo a mais pequena desistir do “tablet”.
Assim que vê o leitor de DVD a exibir um filme, a minha mais nova, que entretanto olhou de soslaio para as outras, atira-me: – Devias ter uma coisa daquelas! – Antes de se resignar com o tradicional livro de colorir e respetivos lápis de cor que a mana traz na mochila.
Bem, as minhas pintam, as dele veem um filme, ele joga qualquer coisa no telemóvel (sem surpresa, um “I-Phone” adequadíssimo ao seu estilo – nada contra) e eu, que escrevia até aqui, vou interromper a escrita cujo interesse entretanto esmoreceu e vou ler um pouco, enquanto não há desenvolvimentos, apesar de me sentir, confesso, por vezes observada. (Sugestão minha, provavelmente).
Passividade interrompida, chegada a refeição, para as crianças em primeira mão. Ambos nos viramos, cada um para o lado das suas, para lhes dar uma ajudinha. Todas entretidas a atacar as massas e nós pacificamente à espera até que chega a nossa vez. Elegantemente, ele pede um copo de vinho e ao segurá-lo verifico, inadvertidamente, que não usa aliança. Qual será a sua história? Onde andará a mãe das crianças? Alguma coisa terá corrido mal (ou não…)? Eu fico pela água embora do que precise mesmo é de um café.
Terminada a refeição, ele congratula a mais pequena por ter comido a fruta toda (todos comeram), enquanto do lado de cá nenhuma de nós lhe tocou (Ups, é que o ananás corta-me o céu da boca…)
De volta à tecnologia porque entretanto uma das minhas também já reclamou o “tablet”, encostando o livro de pintar. Em contrapartida, a irmã está a fazer palavras cruzadas e ao lado o filme segue no DVD.
Assim o tempo foi passando até ao início da descida, altura em que se desligam os aparelhos e a mais pequena ao lado (que afinal me parece agora um pouco mais nova do que a minha mais pequena) pergunta: – Papá, quando “chegalmos”, comemos, lavamos os dentes e vamos logo “pala” a cama, não é? – Ficam por Lisboa, certamente. Nós seguiremos viagem. Não me importaria de ficar pois não deixaria, de certa forma, de estar em casa mas infelizmente ainda nos faltam umas duas horas de espera, mais meia hora de avião e uns quarenta minutos de carro até ao nosso destino final.
Subitamente e quase em simultâneo, de ambos os lados, as quatro miúdas pegam no panfleto com as instruções de segurança e duas delas (as mais velhas de cada lado) questionam a função dos “escorregas”, durante a descida.
Aterragem tranquila, nova aproximação para retirar a mochila (sim, o porte clássico é atenuado por uma mochila tipo Coronel Tapioca) sobre mim (se a dita me caísse em cima, esta história talvez ganhasse mais piada…)e saímos, corredor a fora rumo ao autocarro onde cada um segue para seu lado e assim com a sua vida, como convém e ainda bem, pois já vi(vi) filmes que me cheguem. No fundo, aquilo a que achei graça foi à coincidência e resolvi, por isso, registar a ocorrência.
Enfim, duas horas passadas, outro voo, igualmente sentada na coxia, desta feita do lado direito e tendo como vizinha do lado esquerdo, uma miúda nova que talvez ainda não tenha completado duas décadas de vida e que, em comum comigo, aparentemente não terá nada, para além do verniz de gel das suas unhas. Nada para contar ou a acrescentar, portanto.
A esta hora, enquanto bocejo, desejosa de chegar a casa, já o “papá-boa-figura” terá deitado as suas filhas no conforto de um qualquer belo apartamento da minha cidade, cujas luzes lá em baixo estão cada vez mais pequeninas, acentuando aquela velha saudade.      


Sofia Cardoso
28 de dezembro de 2015 

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