Pouca terra, muita conversa II
Um bebé chora desconsoladamente, servindo
de pretexto a que uma senhora, sentada atrás de mim, encete um diálogo com a
passageira vizinha.
Definitivamente, atraio conversas de comboio.
O diálogo tem início porque a dita senhora,
sexagenária, trabalhou 36 anos (a minha idade!) no aeroporto de Faro e viu
muitos casais estrangeiros ignorarem o choro dos filhos. Daí, passou-se para a
sua própria vida num abrir e fechar de olhos e lá estou eu, uma vez mais, a
tomar conhecimento, inadvertidamente, de toda uma vida sem recurso a redes
sociais.
O filho, de 31 anos, vive em Londres há 9 anos,
com a noiva, de 26, que acabou de pedir em casamento. [Foto de filho e anel
mostrada à interlocutora via telemóvel...] Teve outra namorada antes desta, por
quem emigrou deixando a profissão incerta que o fazia saltitar de Spa em Spa
entre Vilamoura e a Quinta do Lago, só que a relação, ainda que duradoura, não
resultou.
Todos os anos a mãe visita o filho e até tem
tido sorte com o tempo porque apesar do frio (muito, sobretudo no Natal) não
costuma chover muito.
Constato que é uma senhora viajada, por aí e
porque tece considerações sobre a preferência que tem pela EasyJet por
comparação com a Ryanair. De resto, neste momento, vai de comboio (pela segunda
vez na vida, pois costuma ir de carro) até Lisboa para apanhar o avião que a
levará a Macau, com escala em Frankfurt, para ver a irmã que vive lá.
A irmã, que dos seus 63 anos tem diferença de
apenas 18 meses (são umas velhotas, declara com graça) teve cancro do pulmão (e
não fumava!) Dizem os médicos que estava no sítio certo à hora errada porque
apanhou uma bactéria qualquer que desenvolveu o "bicho ". A família
apanhou dois "cagaços", já que o cunhado também teve um problema
oncológico mas num rim. Aparentemente, tudo ok agora, graças a Deus.
A irmã vem a Portugal todos os anos, em agosto, como não poderia
deixar de ser mas, para ela, será a primeira viagem a Macau. Tem que aproveitar
porque a irmã deve estar quase de regresso e depois já não tem oportunidade de
lá ir.
Vai com a irmã do cunhado que estará em Lisboa
à sua espera. O marido? Ficará sozinho por 15 dias《que é
para aprender!》[Risos] Na verdade, deixou-lhe vários tupperwares de sopa
feita e umas coisinhas mais, para além do que vive mesmo em frente de um
pronto-a-comer. Sim, vive naquela avenida X, a seguir à passagem aérea, ao pé
da clínica Y, ali em Faro.
Nisto, parecendo "bruxo", o dito
liga, ao som de um toque romântico (palavras da ouvinte interessada que pouco
falou entretanto – uma personagem perfeitamente secundária, portanto) e ela
desmancha-se em palavras carinhosas, preocupada em saber se já comeu e
lamentando, em seguida, que ainda está a chegar a Ermidas - Sado, onde sairá a
sua companhia de viagem que, assim, a vai deixar sozinha, ao que o marido responde,
brincalhão, que o comboio deve ser a carvão. Não desliga sem antes lhe
relembrar que tem que tomar os comprimidos. (Tem medo que se esqueça, desabafa
ao desligar.)
E assim, chegada ao destino, a rapariga
despede-se simpática e educadamente, desejando que a senhora se divirta e
aproveite a viagem. A mesma agradece e retribui, desejando-lhe saúde e tudo de
bom.
A partir daqui, silêncio absoluto nos lugares
atrás de mim enquanto o meu cérebro grita que escreva tudo o que registei e
que, não resistindo, acabei agora mesmo de resumir-vos assim.
Sofia Cardoso
24
de março de 2016
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