Eu, cidadã.
De miúda fiz-me mulher, com muito orgulho e sem precisar de quem me
reconheça, por isso, um estatuto especial.
Em criança, sempre ajudei em casa, a par de brincadeiras, enquanto ia
crescendo. Já universitária, fui babysitter
e trabalhei numa loja, prescindindo de horas de diversão para juntar uns trocos
para ir sustentando essa mesma diversão quando pudesse.
Acabado o curso, fiz as malas e mudei de distrito por amor, começando
logo a estagiar. Fora de casa dos pais, passei a ter a minha e uma vida em
comum para gerir.
Sempre tratei de tudo quanto são burocracias da vida adulta. As minhas e
as de quem vivia comigo. Contas, prazos, obrigações, sempre foram uma das
minhas muitas ocupações, mesmo partilhando tudo o resto.
Idealizei todo um casamento, desde a cerimónia à decoração da festa e de
tudo tratei, ao pormenor, sem recurso a empresa XPTO de organização de eventos.
Agarrei sempre as poucas oportunidades de emprego que foram surgindo,
mesmo fora da minha área de formação ou de preferência e nunca tive medo do
trabalho. Fiz várias coisas em diferentes áreas e trabalhei longe de casa até
decidir aumentar a família.
Grávida, desempreguei-me a pensar na bebé que aí vinha e num futuro
profissional mais promissor. Enjoei durante nove longos meses, fiz retenção de
líquidos a ponto de precisar de comprar calçado dois números acima do meu. Tive
a minha primeira filha de parto normal, sem epidural e amamentei-a, sem
pudores, exclusivamente durante 6 meses e ainda até aos 8. Fui apenas mãe e dona de casa,
vivendo para ela e para as lides domésticas durante 14 meses, porque foi só com
14 meses que começou a andar e essa era condição de entrada imposta pelo infantário
para a sala de 1 ano. Aí, voltei à luta por um novo emprego.
Entretanto, fui decorando a casa inteira, pintei paredes, montei e
arrastei móveis, remodelei e reciclei.
De volta ao ativo, continuei a não saber o que era trabalhar perto de
casa. Fazia 40 a 50 km por dia, numa estrada acidentada e palco de acidentes.
Entrava às 09h e saía às 18h. Muitas vezes saía de casa a correr para levar a
miúda à escola e saía a correr do emprego para fazer o percurso inverso, para que
não fosse das últimas a sair e pudesse ainda desfrutar algum tempo de qualidade
com ela.
Engravidei da minha segunda filha. Trabalhei até ao termo da gravidez,
que acabou numa cesariana programada, que fiz contrariada, mas sem outro
remédio porque ela estava sentada. Necessariamente, desta vez levei epidural
mas a seguir sofri tudo igual porque tive uma hemorragia. Amamentei-a tanto
quanto o seu crescimento permitiu. Dois meses apenas, muito menos do que a
primeira, infelizmente.
Um ano depois, quis o destino (e a patroa!) que o meu posto de trabalho fosse
extinto, porque a dita tinha outros planos para a vida profissional dela.
Sem alternativa, fiquei no desemprego um ano e aceitei a primeira
oportunidade que surgiu. Cá estou, até hoje.
Muita coisa aconteceu entretanto e nunca baixei os braços, não desisti
perante nenhuma adversidade, perda ou virei costas a qualquer responsabilidade.
Tudo mudou… Há um ano, depois de treze anos de um pedido de casamento,
vi-me obrigada a aceitar um pedido de divórcio porque a vida e as
circunstâncias não me deram outra hipótese.
Por isso cá estou, sozinha com duas filhas, numa terra que não é a minha,
quase sem família por aqui e com poucos mas muito bons amigos que, por mais que
de uma ou outra forma me ajudem, não vivem a minha vida por mim.
O despertador toca lá em casa às 06h30m. Uma hora depois, estamos as três
a sair para percorrer 30km da mesma estrada acidentada de outrora mas no
sentido contrário. O meu horário tem início às 09h30m e no entanto, às 09h lá
estou eu, mesmo nos dias em que só entro às 10h porque a mais velha começa as
aulas logo às 08h30m e tive que as levar para perto de mim.
Findo o dia de trabalho, os mesmos km de volta. Entre atividades das
miúdas, supermercado, jantar, loiça, roupas, ajudas com trabalhos de casa e
afins, passam-se as poucas horas que me restam acordada e assim também os
fins-de-semana que ficam reservados para tratar da roupa e fazer limpezas e
logo se vê o tempo que sobra e para quê.
Desde que sou mãe, sempre cumpri religiosamente prazos de vacinas e consultas
médicas, onde sempre foram comigo, perdendo horas de sono junto delas quando
estão doentes. Sempre acompanhei os estudos, sem falhar reuniões, festas e
outras participações. Sempre levei as minhas filhas às festinhas de anos dos
amigos, ao cinema, ao parque infantil. Sempre contei histórias, fiz jogos e
puzzles com elas, entre outras brincadeiras. Sempre tratei das listas e das
compras de presentes de Natal, aniversários e afins. Bem assim, as listas de
supermercado. Carreguei e carrego muitos sacos de compras, sozinha.
Acima de tudo e muito mais importante, sempre lhes dei muita atenção,
mimo e educação, em qualquer fase ou circunstância, fazendo o melhor que sei e
consigo, orientada pelos valores da minha formação.
Troquei o ginásio frequentado por dois curtos anos da minha trintona
existência pela ginástica orçamental que faço para gerir impostos, seguros,
despesas com casa, pessoais e correntes, na perspetiva do que sobra para a
rúbrica “extras” e ainda, eventualmente poupar qualquer coisa.
Não me perco em centros comerciais e raramente vou ao cabeleireiro.
Aliás, estou em modo “californiana com toques grisalhos” porque não faço nuances quase há um ano.
Não tenho empregada doméstica, nem babysitter
ou avós disponíveis que me possibilitem ir só ali fazer qualquer coisa que
precise, me dê jeito ou mero prazer.
De resto, contam-se pelos dedos as oportunidades que tenho para estar com
a minha família ao longo do ano e perco-me na contagem de ocasiões importantes
que tenho perdido das suas vidas ao longo do tempo…
Sou mãe a 100%, trabalhadora em horário completo, dona de casa por turnos
e mulher no tempo que resta.
Como eu ou em situações muito mais complexas ou até incomparáveis, tantas
outras mães que admiro, mesmo que não as conheça…
Posto isto, será que alguma de nós tem tempo ou sequer se interessa por
tecer considerações teóricas e, permitam-me, patéticas, sobre o nome escolhido
para o nosso documento de identificação? Acham mesmo que me adianta a vida ou
me faz sentir mais mulher a alteração de um nome cuja designação é
perfeitamente legítima à luz da Língua Portuguesa, que sempre usou o masculino
em inúmeras circunstâncias com sentido genérico? Depois do cartão virá o quê, a
“Loja de Cidadania” porque as senhoras podem achar que não são bem-vindas
naquele espaço? Tenham paciência! Não têm nada mais importante para discutir? Ó
senhores, querem mesmo perder tempo? Então, em sintonia com o país que temos
hoje, chamem-lhe mas é “Cartão de Super-Herói” ou de “Super-Heroína” se o vosso
sexismo fizer muita questão!
Sofia Cardoso
21 de abril de 2016
Comentários
Enviar um comentário