Quem espera...

Sala de espera do dentista.
À minha direita, uma senhora rói as unhas. (Sintomático).
À minha esquerda, uma rapariga distrai-se com um qualquer jogo de cartas no telemóvel.
À minha frente, o balcão da rececionista onde acaba de chegar um pai com uma criança que vem de telemóvel numa mão e de livro na outra.
Ao fundo, duas ou três vozes que trocam ideias na típica pronúncia da cidade algarvia em que me encontro.
Ao longe, a voz do doutor, cujo rosto ainda não conheço, que se ocupa de quem inevitavelmente permanece em silêncio, alheio ao que se passa aqui fora, a quem espera.
O telemóvel da dita criança estaciona na cadeira ao meu lado para ser ligado à tomada mais próxima. Com ele, o livro do pai da criança que aproveitou para ir ao WC e que, ao regressar, destrona o aparelho, colocando-o no chão, e abre o livro na primeira página. Não consegui ler o título ou reconhecer a capa mas é de Domingos Amaral e tem um número de páginas considerável.
Lembro-me que também vim de livro atrás, como sempre e para todo o lado onde sei que vou ter que esperar, só que mantenho-o na mala porque ainda não tenho a capacidade de ler e escrever ao mesmo tempo.
Entretanto, a senhora que continua à minha direita e que daqui a pouco não tem unhas (era melhor ter trazido também um livro…), olha-me de soslaio como que questionando o que tanto escrevo e começo a ter verdadeiramente dó daqueles dedos.
Reparo na televisão ligada, inacreditavelmente, na SIC Notícias e não na TVI como é típico das salas de espera, cafés e afins (ponto para este consultório). Em silêncio, António Costa fala para o boneco.
Nisto, o leitor ao meu lado já vai na página 17 e a jovem que jogava no telemóvel é chamada.
Para além dos que ainda conversam, da que rói as unhas e dos que leem, duas alminhas estoicas esperam, simplesmente, sem com nada se entreter.
Trégua no massacre das unhas ao meu lado. A senhora cruzou os braços.
Agora, Jorge Jesus na televisão que fala gesticulando, como se estivesse a fazer “musicallys” (ainda bem que o som continua desligado…)
O rapazinho que trocara o telemóvel pelo livro revela-se entusiasmado com a leitura. Vai fazendo exclamações como se tivesse vidrado num jogo de computador (ponto para a educação que está a receber).
Entra um novo candidato a esperar e senta-se. Perna cruzada e sem qualquer distração ou objeto na mão.
Sai um paciente, entra outra. Isto ao sábado não parece ser demorado.
Eis que entra na sala um rosto conhecido que não me reconhece e deixo-me ficar incógnita. A senhora também está mais preocupada com a emergência que a fez procurar um dentista disponível ao sábado pelo Algarve inteiro do que com quem está à sua frente e por isso acredito que nem me viu. Sem problema. Não teríamos mesmo muito para dizer uma à outra.
Ao meu lado, a leitura vai na página 29 quando é interrompida pelo filho que quer mostrar qualquer coisa no seu livro.
Na televisão, imagens de Óbidos, terra de memórias da minha infância e coração. A viagem que o meu cérebro começa a fazer pelos caminhos empedrados desta maravilhosa vila é interrompida pelo som de um daqueles instrumentos barulhentos dos dentistas que rapidamente me situa no espaço e no tempo.
Tenho cá uma vontade de estar aqui…! [Suspiro]
Pela primeira vez desde que aqui cheguei, toca um telemóvel. Som irritante, interrompido num instante.
Um dos dois estoicos que ainda aguarda a sua vez mantém-se a olhar o vazio, de perna cruzada e mãos em repouso (ponto para a sua paciência).
Entra alguém familiar de uma das assistentes do doutor. Como a porta do gabinete está aberta, enceta-se (e ouve-se) a conversa. O jovem diz estar admirado com o movimento no centro da cidade e exclama: «há mais gente aqui ao sábado do que no Porto ou em Lisboa!» [Deve ser...] Penso eu com a ironia e suspeição de quem não atinge estas comparações de alhos com bugalhos.
Chamam o estoico e a sala vai ficando mais vazia. Felizmente, porque já me doem as costas.
Lá fora, ouve-se o sino da igreja. Meio-dia. Lembro-me do que me trouxe: meio-dente…
O pai leitor avança para a página 40, a senhora das unhas esfrega as mãos e o António Costa reaparece na televisão. No rodapé: «Benfica vence Chaves por 3-1». Então e agora a culpa é de quem?
Sai o estoico, acho que com menos um dente, e entra a aniquiladora de unhas. (Pausa no vício). Não demora, eu sou a próxima. Enfim o meu nome. Fui.

(Mas deixo-vos uma sala de espera mais divertida...) 


Sofia Cardoso
25 de fevereiro de 2017

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