Pé n'areia, olho na vida alheia


Já vos disse multiplicadas vezes que adoro pessoas, mesmo que goste cada vez mais de estar sozinha. Cada pessoa representa um conjunto de histórias, umas parecidas com as nossas, outras completamente diferentes mas todas únicas, desde logo porque os protagonistas nunca são os mesmos. Há aquelas que são como livros abertos, outras, mistérios por desvendar. Quando desconhecidas, gosto de as observar, de ver como se comportam umas com as outras ou sozinhas.
A praia é um bom sítio para (ad)mirar pessoas. Ouve-se inadvertidamente as conversas, distingue-se as pronúncias, cataloga-se, sem maldade. Precisamente onde estou.
Mesmo chegando quase às 18h, há muita gente. (Típico domingo de agosto numa das praias mais “in” do sotavento algarvio, querias o quê?!)
Música de fundo: o suave bater das ondas do mar. Ruídos: o choro gritado de criança, o bater de uma bola, o vento a soprar, a avioneta que aqui e ali atravessa o céu puxando a publicidade do momento.
O casalinho ao meu lado direito pondera ir comprar limas e açúcar amarelo. (Já me cheira a caipirinha…) Do lado esquerdo, três cotas conversam sobre cenas de gajos, interrompendo os discursos, aqui e ali, para repreender os miúdos que brincam com paus à beira mar (cenas de putos). Nisto, uma princesa de fato de banho com folhos, trazendo ao pescoço mais colares do que banca de feira, corre zangada atrás de uma mana ou prima que lhe fez alguma… Ouvem-se gritos de guerra (ah, são ainda os miúdos dos paus!) Em volta, o silêncio de quem dorme, cortado pelo choro de quem se magoa com um dos tais paus (e pronto, acabou-se a brincadeira!) Um outro rapaz passeia as suas duas pranchas de bodyboard para baixo e para cima quase passando a ferro um casal de namorados que olham de lado sem coragem para se zangar, recebendo um sorriso maroto como pedido de desculpa.
Apercebo-me, então, o quanto a praia é um intemporal local de brincadeira ou de não fazer nenhum, a par de uma poderosa arma contra a tecnologia que nos distrai a todos noutros ambientes. Eu escrevo; a criançada, entre jogos de bola, castelos na areia, pranchas e mergulhos, diverte-se em conjunto; há quem leia e quem simplesmente se deite a vegetar.
Um pequenote, acabado de chegar, corre em direção à areia molhada como se não houvesse amanhã, com uma pá maior do que ele e desata a escavar. (Ai, querido, se alguns adultos se atirassem à vida com essa determinação…!)
Os amigos da caipirinha falam agora em conquilhas, enquanto a escassos metros um pai discute com a filha a oportunidade do momento de comer MEIA bolinha (a praia abre o apetite, é um facto). O dito pai está a começar a ficar impaciente, quer sair da praia «A-GO-RA» e a catraia não está a colaborar.
Olha, está um papagaio de papel no céu! Lá está, muito mais giro de manobrar e muito menos intrusivo do que um drone por aí a cuscar.
Menos conversas audíveis, porque as pessoas começam a bater em retirada, detenho-me nos corpos e modelos de roupa de banho. Não há dúvida que a praia é também o local público mais diplomático ao nível da moda. Cada um está como quer, como se sente bem, mais ou menos vestido, mais elegante ou mais, digamos, abundante, tudo naturalmente bem aceite. A sociedade devia ser tão despojada de tretas como uma ida à praia. Não é preciso grande cenário para estender uma toalha e dar uns mergulhos.
Constato também, alegremente, como na praia ainda se sabe brincar em família e sem apetrechos. Uma simples “apanhada” é um bom exemplo.
O romantismo também (ainda) existe. Está um casal abraçado à beira mar, com uma luz dourada incrível a ajudar, digno de fotografar. Mas são estes momentos espontâneos, contrários aos que são construídos para partilhar, que mais bonitos são de admirar. Caminham na minha direção sem fazerem a menor ideia de que estão a ser fonte de inspiração nesta maravilhosa rede social que é a vida real.
Entretanto, o pequenote da pá amarela foi ao banho ao colo do pai e está a ser mudado sob protesto, ao mesmo tempo que canta a música da «Quinta do Tio Manel», sem sair do «ia-iá-ô», dizendo estar cheio de sono. (Eu bem disse que a pá era maior do que ele…)
As gaivotas vêm agora espreitar, voam baixinho, anunciando a hora de regressar. Daqui a nada, começam a aterrar. Está a arrefecer, é a debandada. Vou ficando, não tenho pressa. Gosto de me despedir ao mesmo tempo que o Sol e caminhar com o seu adeus no olhar.
Quando o laranja do céu o anuncia, levanto-me, já sem vizinhança, e vou também.
 Já na passadeira, uma birrinha infantil que àquela hora não surpreende. O filho e o cansaço do dia ou a mãe e o cansaço dos dias… A vida dos adultos não é fácil mas às vezes não facilitamos igualmente a das crianças… Devíamos ter um sistema instalado de relaxamento automático quando atingido certo nível de stress e/ou de impaciência, sobretudo quando a causa não são eles mas são eles que acabam por apanhar por tabela…
Mais à frente na passadeira, reta final do percurso e deste escrito, um outro pequeno queixa-se do ouvido, ao que a mãe responde, sem surpresa, que amanhã não há piscina, replicando ele, muito rapidamente, que não é da piscina mas do café que parece que provou. Só pode, foi a correr passadeira fora e nunca mais parou. [Risos]


Sofia Cardoso
18 de agosto de 2019

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