Pouca-terra III


Desta vez o comboio nem precisou de começar a andar para a cabeça começar a fervilhar de vontade de escrever.
Eu já bem sentada e entra um senhor com alguma idade, escoltado por alguém que se prontificou a indicar-lhe o seu lugar. Viaja sozinho, ao meu lado, do outro lado do corredor, o mesmo que inadvertidamente impediu durante uns longos minutos, até conseguir tirar do ombro o pesado saco reutilizável de compras que trazia, cheio de outros sacos de plástico não tão reutilizáveis assim.
Uns 10 min depois do comboio partir, toca um telemóvel, num toque estridente que só pára quando o senhor consegue finalmente tirá-lo do bolso da camisa de xadrez. Alguém preocupado do outro lado, que logo é tranquilizado com um “já vou a caminho”, “está a correr tudo bem até agora”, “as pessoas são simpáticas, até me vieram trazer ao meu lugar!”
[Sorrio e pego na caneta]
O senhor da CP (será o maquinista?) dá-nos as boas vindas em não-sei-quantas línguas (espetáculo, muito à frente!) e deseja-nos boa viagem (e eu só imagino a minha Mizé a fazer gestos, sabe-se lá porquê…)
[Silêncio]
Esta carruagem está a portar-se muito bem (ou muito mal que isto assim não tem piadinha nenhuma…)
Bem, na falta de inspiração cá dentro, viro-me para fora (por alguma razão opto sempre por um lugar à janela). Tantos quintais desperdiçados…! É só entulho. Muitos dariam belos jardins mas esta mania humana de acumular em vez de “arrumar”…
Paragem algures e eis que o lugar, antes livre, ao meu lado, passa à categoria de ocupado. Um “engomadinho” morenaço que se senta cumprimentando-me com um “boa tarde”. Um troley de low cost aos pés, dois telemóveis poisados na mesa de apoio, tablet e revistas na mão. Poisa também as revistas, consulta qualquer coisa no tablet. Poisa agora o tablet, agarra-se ao telemóvel. É só “plins”, entre risos. (Se eu conseguisse ler as mensagens, isto ficava já mais interessante…)
Entretanto, está uma miúda sentada algures, cuja idade não deduzo pela voz que é só o que alcanço dela, numa chamada em alta voz, aparentemente a jogar qualquer coisa com qualquer outra miúda, à distância. Viva a tecnologia! (Ou não…)
“Alte”, e pára o comboio! (Riam-se que esta “paragem” foi mesmo só para isso… Perceberam?)
Prossegue-se a viagem e o silêncio é quebrado, à minha frente, pelas críticas ao (mau) funcionamento do ar condicionado (está um calor que não se pode).
“Isto só interessa o dinheiro (…) eu também trabalhei 46 anos e nós temos que atender o outro o melhor possível, sejam doutores ou não. Tem que haver respeito. Tem que haver regras.” E as críticas logo passam para as situações a que assistia enquanto ainda trabalhava.
Ao meu lado, o morenaço passa os olhos a fugir por um artigo da “Sábado” sobre o Ângelo Rodrigues “bufando” com um certo desprezo. Devias pelo menos ler o artigo antes de virares a página com essa nuvem de censura a pairar sobre a cabeça, a mesma que paira sobre a “santa” sociedade (penso eu, com os meus botões). Deixem o rapaz em paz. Ninguém é perfeito e só o próprio poderá dizer de sua justiça como isto aconteceu. Que recupere, é o que desejo. Adiante…
À frente, a conversa regressa ao A/C e o meu companheiro do lado ri-se e dá-me vontade de rir, até a senhora – que entretanto se foi queixar ao revisor – voltar e anunciar que o A/C da carruagem está avariado, que eles não podem fazer nada e o “engomadinho” sair-se, entre dentes, com um indelicado “vá em pé!” Nisto, já a senhora está a ligar do próprio telemóvel para a CP: “é inadmissível! Quando chegar a Lisboa, vou fazer uma exposição.” Até lá, levanta-se com a desconhecida do lado e mudam juntas de carruagem.
Sossego outra vez. Eu cá não sou de intrigas mas eu até sinto o A/C vindo da janela. Está é mesmo muito calor lá fora. Eis que surge então o revisor a pedir muita desculpa e dizer que há lugares vagos na última carruagem da 1.ª classe. Ato contínuo, o meu companheiro, com um cordial “até já”, levanta-se e “põe-se ao fresco”. (Agora já não se ri…)
Quando a fome aperta, resolvo ir ao bar, onde rapidamente me apercebo que há quem tenha mais sede do que fome. Fala-se alto e há um caixote de lixo cheio de latas de cerveja, umas quantas emborcadas de certeza por um cidadão ucraniano (sei-o porque alguém, que não eu, reconhece a língua) que fala a 300km/h (acho eu, que não diferencio o início do fim das palavras) para um português que não conhece mas que caiu na asneira de lhe dizer que percebia umas palavras. O outro, notoriamente descontrolado, acaba por sair do bar para andar de carruagem em carruagem à procura de a quem se colar. Pior é o outro acabar por sair no Pinhal Novo (já escrevi estas palavras nalgum lado…) e o outro sair a correr, com uma senhora mala, atrás dele… Acho que aquilo não vai acabar bem mas…
[Chegada e, dois dias depois, o regresso]
Aquela confusão típica dos lugares. Há sempre quem não olhe ao n.º da carruagem ou quem troque a fila. Antes isso do que apanhar o comboio para Faro a achar que se está a caminho de Évora. Foi real, com um casal atrás de mim. (Ah e tal, o de Évora era o comboio que estava “agarrado” a este mas partiu à frente…! – Justifica-se o revisor…)Estava-se mesmo a ver que isto ia acontecer com alguém, tal foi a desorganização na linha, sem nunca haver uma alma para ajudar os mais distraídos a lidar com o que aparece no écran e o que se passa efetivamente na linha.
Bom, mas voltando “à dança das cadeiras”… Num minuto tenho uma miúda sentada ao meu lado, no outro um amiguinho a rondar a minha idade a dirigir-se a mim em inglês. Afinal não acontece só no Algarve. (Ainda se eu fosse loira e tivesse 1,80m…!)
[Silêncio]
Ou não… Oiço uma música estridente e irritante que vem de uns phones algures atrás de mim que não consigo identificar. Tirando isso, só o amachucar de um pacote (de batatas fritas, presumo).
Que tédio de viagem. Vou fechar a caneta e abrir o meu livro.
Cuidado com o que escreves… (O comboio parou e cheira-me a queimado…) Calma, já seguiu.
O companheiro de assento dorme, de telemóvel na mão e vai deixando tombar a cabeça. Está aqui, está encostado ao meu ombro. (Mau…)
A cerca de 1h do fim da viagem, chega o revisor. Mostro-lhe o bilhete no telemóvel. O dito agradece. Ao meu lado, faz-se o mesmo, ao que o senhor pergunta, como se estivéssemos a viajar juntos: “Pedro e Sofia?” e o outro responde, enquanto eu ainda estava a processar a dedução: “exato!” (A sério?!)
Ok, fiquemos por aqui. O intercidades e as suas infinitas potencialidades...
Sofia Cardoso
08 de setembro de 2019


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