Ter de sair


Juro que não sei como é que ainda há pessoas que se passeiam por aí (onde é que vão mesmo?!) como se nada fosse ou que querem ir sei lá para onde na Páscoa, segundo se diz... Eu precisava de quatro bens essenciais e andei a resistir até sair. Não ia ao supermercado (pequeno) que tenho a dois passos de casa talvez há três semanas. Não precisei porque antes de me isolar comprei numa superfície maior tudo o que podia precisar (sem abusar) e no domingo passado, na falta sobretudo de alguns frescos, fui ali à serra, à mercearia de uma amiga. Fiz as compras por vídeo-chamada com ela a partir de casa (muito à frente!) e depois foi só lá ir buscar e pagar. Só que hoje tinha mesmo que ir. Encontrei uma fila civilizada de umas seis pessoas à porta, entrando à vez, por cada pessoa que saía. Constrangeu-me este deparar pela primeira vez com a realidade prática da coisa. Nunca pensei, como toda a gente, que um dia ia passar por isto. Senti um aperto no peito. Enquanto esperava, vi uma senhora sair e sacar imediatamente de um cigarro que levou à boca, depois de pôr os óculos escuros, com sacos de compras à mistura. Fiquei a pensar no risco daquilo (para ela). Já eu, não levei nada para além de uma mini carteira no bolso e um saco pequeno de compras. Com roupa prática e de cabelo apanhado, fui sem telemóvel, sem mala ou acessórios desnecessários. E sem luvas, que atrapalham os movimentos, para além do que, já foi explicado, nos dão uma falsa sensação de segurança porque tocamos nas coisas na mesma. Só o meu saco na mão para não ter que usar sequer o cesto do supermercado e uma tremenda mentalização no sentido de nunca tocar na cara (apesar da comichão constante na testa, provocada por aqueles cabelinhos mais curtos). Fui direita ao que queria e dei comigo a dizer que tinha tido saudades, à senhora da charcutaria, a quem perguntei como estava, recebendo uma espécie de suspiro contido como resposta. De soslaio, vi um senhor a ser atendido no talho que, enquanto esperava pelo seu pedido, esfregou a cara toda com as mãos... [Céus] Só queria pagar e fugir. Não toquei em nada para além dos bens que trazia e que fui pondo no saco, tendo que os retirar na caixa para pagar, naturalmente, após o que vim de corrida para casa. Descalcei-me à porta e fui direta à varanda da cozinha, onde deixei lá fora, primeiro os ténis e, depois de vazio, o saco. Arrumei o que comprei com os devidos cuidados, lavei as mãos e fui tomar duche, depois de deixar também a roupa que despi, ao sol, na varanda (irá para lavar mais tarde). Não gosto desta logística estudada e amedrontada que acaba com a espontaneidade e tranquilidade do dia-a-dia. Mas é necessária e só penso na complexidade da logística de quem sai todos os dias para trabalhar naquelas profissões cruciais para todos nós... Respeito, um profundo respeito por todos eles, para além de uma imensa gratidão. Eu fui só ali e já me recolhi e ainda assim... Por isso, deixem-se de tretas, quem ainda não percebeu nem acatou o que se pede. Deixem-se de queixumes desnecessários de putos mimados. Há quem enfrente uma rotina muito mais penosa (mais esgotante, mais arriscada...) do que quem está simplesmente sentado no sofá ou a fazer coisas de que gosta ou mesmo só de seca, em casa. Da atitude consciente e responsável de cada um de nós depende não só a vida de todos mas também o tempo que isto pode durar... Se já vos parece tempo demais, ajudem a travar e não a eternizar... Mais do que nunca, temos que nos unir, fazer a diferença e, sobretudo, não dificultar. 
POR FAVOR, FIQUEM EM CASA! 
P.S. - A fotografia é da capa do diário (toda feita por desenhos, pintados, recortados e montados pela minha adolescente de 14 anos) construído para deixar registada a quarentena à maneira dela. [Sim, tem a quem sair...]
 Sofia Cardoso
29 de março de 2020

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